Discreto, humilde, simpático, magnífico!

22 junho 2011

Oriomba doa tudo o que tem ao seu 19º amor

Em quase meio século de vida, empurrando um carrinho de madeira singelamente adornado com a bandeira nacional, tal qual andarilho pagador de promessas, coletando pelo caminho tudo o que se pudesse inferir prestável ou imprestável, Oriomba participou de inúmeros bazares, trabalhou por comida, estacionou diversas vezes sua limusine na Esquina dos Aflitos, nas várias mudanças de endereço da referida feira livre dos que sobrevivem do escambo de quinquilharias corriqueiramente subtraídas do alheio, trocando seis por meia dúzia e no mais das vezes perdendo seus bens pelo simples prazer em andar de mãos vazias.

Viu seu espólio disputado por meia dúzia de viúvas, foi dado como desaparecido, chegando a ser repreendido pelo delegado por não possuir residência nem emprego fixo, e fez um carreto em especial, transportando consigo todos os seus pertences numa caravana solitária e sem destino a bordo de veículo popular, nos quase dois mil quilômetros que separavam um de seus precários endereços, próximo à fronteira com o paraguai, e a capital das alterosas, onde fincou o pé - mormente na lama - e de fato onde se construiu o principal palco de suas tragédias e comédias, em qualquer dos casos, dignas de comiseração e escárnio.

Decidido a se desfazer de todo e qualquer peso, adepto da caminhada febril, doentia, sem razão, sem objetivo, sem precedentes, Oriomba deu preferência à jornada despretensiosa, qual seja aquela em que não se carrega junto ao corpo mais do que dois merréis para a água mineral, já que o valioso líquido não verte com abundância em nascentes confiáveis como antanho. A caravana solitária se dá com a leveza de quem não tem peso algum nos bolsos, a despeito das toneladas na consciência, sabedor de que não se rouba do viajante suas lembranças e saudades, sua vontade e o que remanesceu de sua rota dignidade.

Mas para esvaziar os cofres é necessário hercúleo esforço, um bom maçarico ou simplesmente uma falência fulminante, que não deixa ao cidadão outra escolha. Nocauteia-o e o nivela aos animais rastejantes, e paradoxalmente é ao rês do chão que se vislumbra com nitidez impressionante o céu de brigadeiro de seu passado anuviado e, comendo terra a cada seis horas para não sofrer um colapso no sistema digestivo, pôr as vistas num panorama onde tudo parece estar incrivelmente claro, em que cada gota de orvalho caída do céu – ou de condicionadores de ar da avenida afonso pena – tem seu valor e sua razão de ser e é dádiva de deus ou dos antigos e carcomidos equipamentos springer admiral.


E foi nesse solo que conheceu a sua musa de número dezenove, mãe de todas as suas criações, desde as mais remotas, desde o início, os primórdios, o tempo em que vendia artesanatos baratos e andava com uma tabuleta dependurada, proclamando seus préstimos como autor, recitador e carpideiro de poesias baratas – só cinco cruzeiros, poesias feitas na hora, com lágrimas verdadeiras, senhoras e senhores! Toda a água fresca que se encontrava na moringa de Oriomba, ao lado de seu catre de presbítero moribundo, todo o alimento que evitou a degenerescência dos órgãos vitais deste narrador têm sido fornecidos por uma única fonte, encontrada onde menos se podia procurar, mas imediatamente percebida como a inevitável e irremediável provedora de inspiração, de pulsação, de motivos para continuar vivo, embora já se lhe tivessem declarado morto em várias ocasiões.


Por essa dama Oriomba resolveu abdicar de todos os seus pertences, adquiridos, como já mencionado, à custa de trabalho árduo, pequenos furtos, algumas passagens por artigos ainda remanescentes da lei das contravenções penais, doando à musa de todos os tempos o rol completo de bens doáveis, enfim, um rádio de pilha marca motorádio, um saco de leite em pó vencido, um compacto simples dos pholhas, um terno do leguedê das roupas, uma bicicleta barraforte monark, meio pacote de lanche mirabel, dois saquinhos cor de rosa de pipoca de ponto de ônibus, uma câmara de ar de trator para reunir a família e flutuar nas águas calmas de piúma, uma cítara com partituras natalinas, parte da dentadura do avô que Oriomba nunca conheceu, além de todas as cartas de amor que escrevera e recebera na adolescência, na ilusão de que todo aquele sentimento pudesse ser multiplicado pelas declarações sinceras e insanas gatafunhadas nas incontáveis missivas.

Um amor belo, profundo, puro, diferente! Nasceu na inocência de uma troca de olhares, e morreu quase numa troca de tiros. Mas não sem antes agonizar por trinta dias e trinta noites, quando, enfim, foi lavrado o atestado de óbito na presença de um tabelião juramentado e um pároco devidamente paramentado. Após grandiosas exéquias, ainda convalescente, o magnífico Oriomba fez todas as vênias de praxe e se despediu cortesmente, como exigia o seu status quo, tomando rumo incerto e não sabido, embora informações não confirmadas à época dessem conta de que houvera se jogado no leito do rio arrudas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma obra de arte, como tudo de sua autoria. Texto apaixonante e apaixonado.